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INDIVIDUALIDADE, SUBJETIVIDADE E RELATIVIDADE: UMA ANÁLISE SOBRE O DISCURSO DE PROTÁGORAS


Franklin Deluzio Silva Junior
 deluziofranklin@gmail.com

RESUMO: A análise sobre o discurso de Protágoras que alcançou uma acentuada referência no tocante à individualidade, subjetividade e relatividade demonstrando algumas características essenciais. Entretanto, percebemos que essas três características são traços do pensamento de Protágoras baseado em três ideias centrais: (a) homem-medida (homo-mensura¹), (b) o paradoxo de discursos contraditórios e (c) a transformação de um discurso fraco em discurso forte. 

Palavras-chave: Homem, Discurso, Individualidade, Subjetividade, e Relatividade. 

O homem enquanto medida de todas das coisas

De acordo com Protágoras todo juízo é fundamentado nas percepções e sensações (homem), e o homem enquanto medida é capaz de trabalhar os critérios inatos da percepção, para julgar, medir, pois o homem individual, que é o critério fundamental para designar se uma sensação é ou não é determinada coisa, podendo surgir diversas percepções de uma mesma ação, criando nesse contexto através da subjetividade um mundo privado ao próprio individuo.
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 1Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).  
2homo-mensura é um termo do latim que designa a afirmação de Protágoras, homem medida de todas as coisas, mas essa palavra só designa homem medida, o homem que sente e percebe é a medida, ou seja, o padrão, o critério que determina uma sensação. A partir de uma abordagem que abrange critérios e regras que vem a designar certo significado de uma palavra, Protágoras utiliza essas duas palavras, já que elas cumprem os requisitos básicos de significação. 



Nesse ponto, Protágoras defende um relativismo, que para fundamentar foi  apresentado no diálogo Platônico conhecido como Teeteto, uma análise platônica do homem enquanto medida que é explicitado da seguinte forma, numa mesma ação o sujeito pode ter sensações diferentes, logo a nossa natureza empirista é pessoal, de forma que eu percebo  umas características de uma determinada ação e outro sujeito percebe outras, consequentemente um poderá sentir frio e outro calor na ação de um mesmo vento.
Este postulado vem contextualizado, porquanto na Grécia os cidadãos discutiam nas assembleias (isegoria) os assuntos da cidade, onde todos os cidadãos tanto alfaiates, mercadores, guerreiros, etc., se manifestavam com os inúmeros pontos de vistas contraditórios e eram aceitos aqueles discursos que convenciam a maioria dos cidadãos. Então, o relativismo subjetivo nos apresenta uma posição segundo o qual só existe o que cada um percebe, sendo que é através da individualidade das sensações e da subjetividade, que se pode gerar o conhecimento, sendo nós o juiz de nossas percepções.
Protágoras e Heráclito apresentaram em ordem cronológica o mesmo princípio: uma vez admitido o movimento, desaparece a certeza de que aquilo que percebemos seja verdade, pois as coisas são sempre em um constante vir-a-ser3, relativamente e momentaneamente, de certo que Sócrates no livro Platônico Teeteto discutindo com o próprio Teeteto apresentou a seguinte máxima inspirada em Protágoras:

Cada um de nós é a medida do que é e do que não é, e, no entanto cada um difere infinitamente do outro: para um é uma coisa e assim aparece, a outro é e aparece outra coisa. [...] para quem está doente aquilo que come aparece e é amargo, mas para quem está saudável aparece e é o contrário. E não preciso fazer mais sábio nenhum dos dois, pois não é possível, nem se deve acusar o doente de ser ignorante por ter esta opinião, nem o saudável de sábio por ter outra; mas deve-se fazer uma mudança no doente, porque é melhor o estado do outro [...] o médico faz mudança com remédios e o sofista com discursos. Por conseguinte, não fez com que o que  tem uma opinião falsa tivesse posteriormente uma opinião verdadeira; pois não é possível ter opinião sobre o que não é, nem ser afetado por outra coisa que não aquela que o afeta que será sempre verdade. Mas penso que, a quem tem uma opinião afim ao defeituoso estado de alma em que se acha, um benéfico estado de alma fará ter outras opiniões como esta, imagens a que alguns por ignorância, chamam verdadeiras; eu chamo a umas melhores que as outras, mas não mais verdadeiras [...] E afirmo que os oradores sábios e bons fazem com que as coisas benéficas pareçam ser justas às cidades, em vez de defeituosas. Pois, aquilo que a cada cidade parece justo e belo é isso para ela, enquanto assim o determinar” Teeteto

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3 A teoria fluxista Heracliana é resultado de um estudo epistemológico sensorial, que expõe a fundamentação de que as coisas não são fixas, tudo é movimento, tudo é devir e toda a realidade se subordina funcionalmente a  esse movimento, de forma que a realidade se reduz ao vir-a-ser. Desta maneira, existe um movimento que une e organiza o sistema de coisas, nesta manifestação é que Heráclito vê que os opostos fazem e se configuram em  um único todo.

O papel conferido à sensibilidade4 é o principio central para entender o significado das três palavras básicas, isso significa que as coisas que percebo existem mesmo, porque a experiência sensível concede de alguma forma essa existência, contudo essa transmissão se apresenta imediatamente para o individuo.

Conforme percebemos, o conteúdo da percepção é transferido para a racionalização, assim as coisas que não percebo não existem para mim, porque a percepção (fantasiai) consiste em algo individual e necessita do sujeito “presente” para transferir essa informação perceptiva para outro, mas a percepção de outro sujeito pode desembarcar num relativismo que chamaria de primário, conforme as opiniões (dóxai) todas possuem a mesma importância e valor.

De acordo com a visão de Protágoras, o “eu” que julga os valores e que faz o julgamento de todas as coisas sensíveis5, transforma cada indivíduo em juiz do seu entendimento perceptivo e não há outro que poderá julgar por mim, se uma coisa é ou não é, de sorte que afirmá-lo, é decidir tudo que o meu julgamento decretar, isso equivale ao entendimento da minha sensação, pode não ser um entendimento universal. A influência da sensibilidade determina o que percebemos imediatamente, prontamente o pensamento é conhecimento, as sensações são conhecimento, dado que, toda essa causalidade é diretamente ligada com a relação do homem individual e a realidade.

Assim podemos definir a palavra individualismo em Protágoras como aquele que domina alguma coisa, que sentiu alguma coisa, contrariando a visão que o senso comum nos apresenta diariamente, como sendo pensar em si, ramificou para pensar por si mesmo. A partir disso, podemos apontar para um tipo de análise, que conforme as ideias existem, dados históricos o comprovam. O intelecto humano passou por um período de desenvolvimento devido à questão de sobrevivência da raça humana, isso demonstra que o homem individual teve que submeter suas necessidades, seus interesses e faculdades a realidade problemática, criando alternativas para que conseguisse superar essas dificuldades, de forma que o seu individualismo ganhou subsidio para que suas capacidades individuais inatas evoluíssem e desembarcassem numa forma mais aprimorada de conhecer.
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4 A sensação ou a percepção sensorial (aísthesis) é o estabelecimento entre um sujeito (homem) e qualquer  objeto que se encontra na realidade exterior do homem. Ou seja, o encontro e o movimento desses dois protagonistas podem gerar o conhecimento, esse movimento faz com que o objeto emita caracteres sensoriais ao homem, com efeito, o homem poderá através do uso da razão proferir algo sobre.
5 Guthrie (2007, p. 173) entende metron como padrão de julgamento, a forma que Platão utiliza para fazer uma abordagem ligada a sensação como meio de conhecer a realidade exterior do homem. Consequentemente, concebe que cada homem tem um mundo privado, logo cada homem é a medida e tem seu padrão de julgamento, nasce nesse quesito uma relatividade de valores de forma que A, B e C pode definir, sentir ou conceber sensações diferentes.

Portanto, a capacidade de conhecer é inerente ao homem universal, o homem individual tem a capacidade e independência para tomar suas próprias decisões, podendo assim medir, julgar as coisas, essa individualidade é uma herança Sofista que Nietzsche utilizará para defender sua Filosofia.

Por isso, Nietzsche vem defendendo a teoria que a inteligência humana surgiu definitivamente no meio de lutas pela sobrevivência (MARTON, 2001, p. 168). Em vista disso, o homem como indivíduo solitário necessita de suas faculdades naturais para definir o seu intelecto, sua forma de sentir e definir o mundo, de fato em meio a tudo isso nossas capacidades inatas se desenvolveram em situações bastante adversas, nosso crescimento e desenvolvimento tanto intelectual como da condição humana hoje se encontra razoavelmente concretizado devido à sensibilidade, compreensão, adaptação e não podemos deixar de fora a razão “a mãe de tudo isso que somos hoje”, sem ela não seríamos nada além que animais irracionais ou “bichos”.

Por isto, nas Antilogias Protágoras afirma que o homem sempre vai encontrar dois discursos contraditórios, desta maneira faz-se uma proposta muito tentadora, proposta esta que os medievais não suportavam ouvir por causa do “dogmatismo”. A proposta de Protágoras era uma análise em cima do homem individual, impossibilitando um conhecimento universal das coisas e essa impossibilidade se dá porque o conhecimento sensível é individual, sendo que cada sujeito julgue os valores, as ações, os pensamentos e todas as sensações que é experimentado, transmitindo discursivamente o conhecimento das coisas como foi experimentado devidamente.

E [Protágoras] foi o primeiro a afirmar que sobre todos os assuntos existem dois argumentos antitéticos entre si e utilizou-os, arguindo mediante perguntas e respostas, prática que ele iniciou (Diógenes Laércio, 9, 50 et.seq.).
Neste contexto, podemos afirmar que para Protágoras existem duas opiniões: uma que afirma uma coisa e outro que nega. Este fato coloca um ponto chave neste assunto, de forma que o mesmo se fundamenta na subjetividade humana, no que a sensação determina, e no que é uma opinião ou um enunciado verdadeiro.

6 Dogmatismo é um conjunto de doutrinas especialmente religiosas que o homem tem a plena convicção que seja verdade.

A fundamentação parte da ideia que um homem não se iguala ao outro, ele decide a  um sistema complexo de estruturas mentais que são associados muitas vezes ao senso comum, a religião ou a qualquer forma de concepções de mundo que determinam todo o sistema de percepção humana. Deste modo, percebemos também que Protágoras não foge da realidade ateniense, onde o embate político estava no seu auge em Atenas e conseguia mais destaque aquele que apresentava na base do discurso os argumentos mais estruturados, convincentes e persuasivos.

Que diremos, pois, Protágoras sabia muito bem que a época era uma época propicia para esse tipo de arte (tékhne7), pois ele diferentemente dos outros sofistas não visava somente às boas remunerações, mas sim, uma formação plena da condição humana para que  os homens fossem bons nos fazeres da cidade e nas funções sociais, de modo que a cada aula tomada esse ensinamento é fundamental para que gradativamente o homem dentro da cidade se tornará melhor em tudo, ou seja, tornar o homem um bom cidadão para a cidade e para seu povo alcançando desta maneira progresso na vida.

O fundamento teórico apresentado até o momento ampara o subjetivismo e individualismo apresentado por Protágoras, e vêm intrinsecamente ligados ao teor da relatividade expressiva de valores e da moralidade como disse Guthrie, o subjetivismo de Protágoras já foi introduzido em conexão com a relatividade de valores, e a estreita relação dele com suas atividades como professor de retórica é óbvia. “(GUTHRIE, 2007, p. 172)

Neste ponto, podemos considerar a retórica uma fonte de toda a escola sofista influenciada por Protágoras e isso se deve pela estrutura democrática criada na época em Atenas. Logo, no conhecimento sensível em Protágoras o sujeito individual se conecta com objetos reais, mas a sensação vai depender de toda uma estrutura já formada, a definição do objeto depende do indivíduo, sendo de difícil forma negar ou afirmar qualquer postura adotada sobre qualquer assunto, devido a isso há afirmações que se chocam, como o mesmo Protágoras afirma que existem sempre dois pontos em argumentos e ambos são contraditórios. Por isso, o termo medida vem de medir, onde o homem põe o seu critério de julgamento sobre o objeto, argumentos ou qualquer outra forma que o homem tenha de medir e julgar.

7 Tékhne é uma palavra grega que significa arte.

Teeteto em conversa com Sócrates afirma que “o conhecimento não é mais do que sensação” (151e), Sócrates refaz a afirmação de Teeteto e diz que “o conhecimento é sensação”. Sócrates que não é nenhuma “criança”, entende que com isso ele está defendendo  a tese Protagoreana do homem enquanto medida, logo se o homem é a medida daquilo que percebe, daquilo que sente, ele transfere essa ideia de homem para ele e Teeteto que é um dos personagens que está debatendo a teoria de Protágoras, questiona: nós somos homens, qual de nós dois que será o critério para identificar a sensação apresentada? Quem será a medida? Logo após esses questionamentos, Sócrates apresenta um conhecido entre os gregos da época, Heráclito e sua teoria do devir/movimento, analisa em conjunto com a ideia do homem enquanto medida de Protágoras, percebendo que Sócrates vai unindo pequenos argumentos e dialogando entre si Teeteto vai confirmando, vale lembrar que neste ponto Sócrates exalta Protágoras o chamando de “poço de sabedoria” reconhecendo assim a importância magnífica do filósofo. Contudo, ele continua a defender sua tese afirmando que Protágoras, Heráclito e Empédocles entre outros poetas dão a entender que as coisas surgem do fluxo e movimento das coisas, Teeteto imediatamente confirma a situação, devido às provas que o movimento é aquilo que faz uma coisa parecer existir.

Sócrates praticamente incorpora Protágoras e diz que é evidente que o branco e preto é determinado pelo encontro dos olhos com o movimento particular de cada uma, desta maneira a cor que é determinada por esse movimento é algo intermediário e peculiar, com isso ele quer dizer que não há uma exatidão nesse acontecimento, sendo que os animais irracionais não têm a mesma exatidão que para nós humanos racionais, ou seja, não será igual ao que nós enxergamos.

Considerações finais

Diante do que apresentamos a necessidade histórica e a dificuldade de fatos e livros do próprio Protágoras, concluímos que este trabalho alcançou a finalidade que seu tema requeria. Óbvio que pela abordagem textual o Protágoras deixa claro algumas ideias centrais que deixa em aberto à questão. O homem enquanto medida parece ser um problema insolúvel, o homem da metafísica, o homem animal racional, não deixará de ser homem medida, a ideia da relatividade vinculada as ideias de Protágoras nos faz acordar pra um determinado assunto que envolve a impossibilidade de conhecer o absoluto ou verdades, por sermos apenas partes. Contudo,  como  o  homem  é  um  ser  racional  limitado,  parte  de  um  todo,  é  inviável     a compressão daquilo que é absoluto, ilimitado, inesgotável, irrefutável, infalível, logicamente percebemos a extrema pobreza do homem enquanto parte pequena nesse todo.
Essa inflexão da incognoscibilidade do absoluto e da verdade frente à relatividade epistemológica do conhecimento humano vem em razão a processos cognitivos que é determinado por fatores aleatório que são vinculados as crenças, geração, cultura,  entre outros. Logo, o que aparece, logo perece, essa transitoriedade é própria do existir humano e os fatores de sua cotidianidade sustentam essa transição.
Desta maneira, de todas as coisas que existem, seria pura pretensão eliminar o homem acusando-o de formular pseudoconhecimento, e consequentemente deixando-o sem sentido. Essa atividade sensorial que a luz que alumia não alumia de uma vez por todas, como o homem não é o mesmo, devido às condicionalidades pode gerar um encadeamento de ideias e gerar novas ideias. Essa transitoriedade impossibilita o conhecimento do absoluto e da verdade, de modo que não existe uma forma para determinar as coisas, mas existe uma multiplicidade de formas diferentes de sentir, perceber, pensar, falar, que não depende das coisas, mas do homem e suas condicionalidades.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

GUTHRIE, W.K.C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 2007. 

MARTON, Scarlett. Nietzsche e Hegel, leitores de Heráclito. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2.ed. São Paulo: Discurso Editorial, Ijuí: Ed. UN IJUÍ, 2001, pp. 138-9. 

PLATÃO. O Banquete. Tradução Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Lisboa, Edições 70, 2010.

_______. Crátilo. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa, Instituto Piaget, 2001.

 _______. República. Tradução e notas Maria Helena da Rocha Pereira. 6. ed. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1990. 

_______. Sofista. Tradução Henrique Murachco, Juvino Maria Jr. e José Trindade Santos. Lisboa, Calouste Gulbenkian 2011. 

_______. O Sofista. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1980. 

_______. O Sofista. Trad. Sebastião Paz. São Paulo: DPL, 2005. 

TEETETO - Versão eletrônica do diálogo platônico “Teeteto” Tradução: Carlos Alberto Nunes Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia) Disponível em: http://br.egroups.com/group/acropolis/ 

VAZ PINTO, M. J. Sofistas - Testemunhos e fragmentos. Introdução e notas: Maria José Vaz Pinto e Ana Alexandre Alves de Sousa. Imprensa Nacional Casa da Moeda: Lisboa, 2005.


A FILOSOFIA E O MUNDO COMO PRÁTICA.(JOSÉ FREDSON SOUZA SILVA)


 A FILOSOFIA E O MUNDO COMO PRÁTICA.

A partir de meados do século XIX, observamos o desenvolvimento de uma crítica no que diz respeito ao pensamento filosófico, é uma crítica ao modo tradicional de se fazer filosofia, uma crítica que questiona os fundamentos da metafísica clássica. Alguns autores do século XIX como Marx e Nietzsche na Alemanha, Peirce e William James do pragmatismo americano buscaram trazer a filosofia mais para o mundo dos homens, para a realidade de vida dos mesmos, desenvolvendo o que se pode denominar de uma “virada prática” da filosofia.
Esses pensadores perceberam que a filosofia, em sua busca pelo conhecimento, encontrava-se muito especulativa, presa somente a abstrações, acabando assim, por esquecer a realidade empírica. Eles buscaram sair da metafísica e escapar do conhecimento puramente especulativo. O conhecimento não é algo que está fora do sujeito, ou algo que depende puramente do sujeito para acontecer. O conhecimento, para esses filósofos, se dá na relação do sujeito com o mundo, na experiência com a realidade e na transformação da realidade pelo fazer humano, logo, o conhecimento perde o estatuto de estático e a verdade deixa de ser buscada como algo puramente absoluto e conceitual, passando a ser um movimento que se desenvolve na experiência cotidiana da realidade do mundo humano, não em um mundo ideal, abstrato, separado dos homens.
            Neste texto buscaremos colocar algumas características que possam nos ajudar a entender como se dá essa maneira de se fazer filosofia como algo “prático” e “mundano”, ou seja, buscar entender o real a partir da experiência humana do mesmo. Tentar entender o mundo como o lugar onde os homens estão inseridos, compreender os homens e suas ações no mundo, não pensando-os de forma ideal e separados do real.
            Karl Marx, em toda sua obra, busca tornar a filosofia mais voltada para a realidade humana, e em contrapartida ao idealismo predominante na filosofia alemã em seu tempo, assumiu o materialismo como base para o desenvolvimento do seu pensamento. Porém, ele não aceita um materialismo contemplativo e estático a exemplo do materialismo anterior. Para ele, o maior defeito desse materialismo é que não entende o real como sensível, e desta maneira o real torna-se estático e é apreendido passivamente pelo sujeito. Marx desenvolve críticas tanto ao idealismo como ao materialismo; ao primeiro em duas de suas obras, os Manuscritos econômico-filosóficos e em A sagrada família, e ao segundo nas Teses sobre Feuerbach. Neste texto nos utilizaremos das Teses sobre Feuerbach para tentarmos entender como o autor procura desenvolver uma filosofia da prática, deixando de lado a filosofia fundamentada na metafísica e na especulação sobre a realidade. Já na primeira tese ele nos diz que:

O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluindo o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível [...]. (MARX, 1998, p. 11)

O autor entende que o materialismo desenvolvido anteriormente na modernidade, e como faz questão de frisar, inclusive o de Feuerbach, somente apreende os objetos, o real e a sensibilidade sob a forma do objeto. O sujeito, os seres humanos não participam ativamente do processo, ou seja, são apenas uma parte passiva do processo, desta maneira, a apreensão do real continua acontecendo como abstração, o objeto é abstraído como “forma de objeto” ou como intuição do sujeito e não como algo real, material. O objeto, a realidade não é compreendida como atividade humana, é isso que Marx critica. Para ele como vimos na citação acima, a realidade tem que ser apreendida como atividade humana sensível, ele busca fugir da pura subjetividade idealista, ao mesmo tempo que também foge da pura objetividade desses materialistas, que enxergam a natureza e o mundo como algo dissociado dos homens. 
            Seguindo esse raciocínio, para Marx deve haver entre objetividade e subjetividade, uma unidade dialética entre o homem e o objeto, nesse novo materialismo proposto em suas Teses sobre Feuerbach, o objeto não pode ser distinto do homem, mas também não pode ser somente uma ideia como no idealismo. Para ele o real é construído, o real deve ser atividade humana sensível, pois, o homem é atividade sensível antes de ser atividade intelectual. Enquanto subjetividade o real não existe no interior do sujeito, mas somente como relação com o mundo e com os outros.
Para compreendermos melhor essa relação subjetividade e objetividade, não podemos esquecer que em Marx a realidade é um contexto social, histórico e material, é nas relações sociais e com a natureza que os homens criam sua realidade e ao mesmo tempo criam a si mesmos, desenvolvendo assim a história, é no mundo e em suas relações que os homens se fazem. Nessa perspectiva percebemos que para o filósofo o real é indissociável do humano, e é na prática que o homem dá forma ao mundo, portanto, para ele, o real tem que ser atividade.
            Na busca por fazer uma filosofia mais voltada para a prática, o autor continua em suas Teses sobre Feuerbach com um tema que perpassa toda a história da filosofia, que é a Verdade. Na segunda tese o vemos afirmar que a verdade não deve ter sua eficácia buscada na teoria, nos diz ele:

A questão de se saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento isolado da práxis – é uma questão puramente escolástica. (MARX, 1998, p. 12)

Com esta afirmação, nos parece que o pensador deixa claro que o pensamento humano na busca por uma verdade objetiva não deve se colocar como uma questão teórica, pois para ele é na prática, na vida cotidiana e nas relações com os outros e com o mundo que o homem deve demonstrar a verdade, e não em uma lógica puramente especulativa separada do real. A realidade deve ser como ele nos disse, “o caráter terreno do seu pensamento”, isto é, o pensamento em momento algum deve estar separado do mundo, não pode estar isolado da prática, da ação e da relação com a realidade; o pensamento deve expressar a realidade como ela é. Marx não admite uma duplicação da realidade, para ele não existe um mundo ideal ou religioso, o que existe é o mundo dos homens, não o mundo como uma abstração, separado dos homens e de suas ações. Ele não acredita que somente a busca por conceitos e a abstração do real possam dar conta dos problemas e das necessidades humanas que são reais.
 Na décima primeira Tese sobre Feuerbach ele afirma que “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”(MARX, 1998, p. 14). Parece-nos que para Marx o modo de se fazer filosofia mais especulativo deveria ser abandonado e ser substituído por forma de análise mais materialista, somente em uma filosofia prática é que se torna possível fazer uma transição do “ideal” para o real. Não dá mais para ficar somente interpretando o real, é necessário tornar o real humano, pois a realidade é um fazer, não é um conceito a priori, acabado que temos que aceitá-lo.
            Como nos diz Augusto Cornu (1976) o problema de saber se o conhecimento corresponde a uma realidade objetiva somente pode resolver-se do ponto de vista da prática, pois para Marx o homem não conhece o mundo somente através da intuição e contemplação, mas sim como objeto de sua atividade, essa é a crítica colocada na quinta tese[1]. Não existe um ponto exterior para o conhecimento da realidade, os homens estão no mundo e agem no mundo, portanto, não existe exterioridade enquanto sujeito para o mundo. Como dissemos anteriormente, a realidade é uma trama entre a ação humana e o mundo, os homens e o mundo são uma interatividade e essa interação é objetivação.
            A prática humana é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, e usando mais uma palavra de nossos dias, intersubjetiva, por essa razão não podemos esquecer que para Marx o homem não é um indivíduo abstrato, isolado, ele é um ser social, desta maneira o pensamento só existe verdadeiramente nas relações e com a atividade prática dos homens, pois não existe um modo de pensamento independente das práticas humanas em relação ao mundo. Fora isso, todo pensamento não passa de pura especulação. Esse pensamento que surge dessa relação prática dos homens com sua realidade, é que da a possibilidade de revolucionar a realidade e as relações sociais humanas existentes, dando corpo à objetividade dos homens, pois “um ser não objetivo é um não-ser”(MARX, 2004, p. 127).
            Marx pensa esse revolucionar no horizonte da transformação social, pois como vimos, o real é atividade sensível, não estando o meio de existência dos homens somente preso à natureza, mas também as relações sociais, só assim podemos entender que as circunstâncias “são alteradas pelos homens”. Só se transforma o mundo, lidando com o mundo, por isso, “a coincidência da modificação das circunstâncias com a atividade humana ou alteração de si próprio só pode ser apreendida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária”(MARX, 1998, p. 12). Que se dá no movimento histórico, que por sua vez é a ação humana e que segundo Marx, se consolida no trabalho. Ação humana é trabalho, e o trabalho é essa dimensão onde os homens se autocriam, por isso o trabalho assume essa característica de ação revolucionária, pois transforma tanto a natureza como ao mesmo tempo os homens. É seguindo esse raciocínio que os homens no pensamento do autor se criam e criam o mundo e seus meios de vida, não pelo pensamento, mas pela ação, e é por isso que o autor afirma na oitava tese que “toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis” (MARX, 1998, p. 14).
            Como podemos perceber até aqui, vemos a preocupação de Marx em mudar o foco da filosofia de sua época. Para ele, era necessário superar a pura abstração do pensamento e a filosofia especulativa predominante em sua época por uma filosofia que estivesse mais próxima da realidade do cotidiano das pessoas. Ele opõe ao pensamento abstrato um pensamento baseado na percepção da realidade sensível. É nessas Teses sobre Feuerbach que Marx coloca a noção do papel revolucionário da prática no desenvolvimento da vida social e histórica dos homens.
            Continuando com esta visão de que a filosofia deve ser algo mais ligado à realidade, e que a ação das pessoas em relação ao mundo deve se figurar como base para o pensamento, que observamos também no século XIX, o surgimento de uma corrente de pensamento que buscou desenvolver uma filosofia que se adequasse mais ao real. Estamos falando do pragmatismo, linha de pensamento desenvolvida por Peirce, e que conquistou alguns outros nomes que o ajudaram a divulgar esse pensamento como é o caso de William James, que por sua vez foi o responsável por ter tornado o pragmatismo famoso em todo o mundo, como sendo uma filosofia mais centrada nos interesses dos seres humanos, ou seja, uma filosofia de ação.
            Segundo Peirce:

O pragmatismo é a opinião segundo a qual a metafísica será amplamente clarificada pela aplicação da seguinte máxima que visa conseguir clareza: Considerar os efeitos práticos que possam pensar-se como produzido pelo objeto de nossa concepção. A concepção destes efeitos é a concepção total do objeto. (PEIRCE, 1983, p. 5)

Conforme essa afirmação, podemos perceber que as bases do pensamento pragmatista estão fundamentadas na prática, na ação. É uma doutrina que “parece assumir que a ação é o fim do homem”, portanto, é necessário acentuar a conexão existente entre pensamento e ação, a nossa concepção da realidade é a concepção dos efeitos totais que a realidade nos traz.
            Os pragmatistas buscam clarificar a metafísica, e para isso aproximam a filosofia da ciência, e ao modo de Peirce, concebem a filosofia como uma forma de pesquisa que deve ser científica, baseada na experiência, isto é, baseada nos fatos, “em ultima instância os fatos práticos são úteis na medida em que proporcionam o desenvolvimento da racionalidade concreta”. Assim, desenvolvemos o conhecimento para a ação com vista a uma finalidade que é concreta, e nossos pensamentos e ações devem buscar um valor prático em nossa vida cotidiana. Por isso nossas crenças devem se tornar regras de ação. O pragmatismo deve implicar consequências práticas, ou seja, verificáveis, é uma filosofia explicitamente experimental.
            William James (1979) em uma de suas conferências intitulada O que significa o pragmatismo nos diz que o pragmatismo é um método, que serve para “assentar disputas metafísicas”, que segundo ele, se estenderiam interminavelmente. Para ele o método pragmático deve buscar interpretar essas noções traçando assim suas consequências praticas.

Que diferença prática haveria para alguém se essa noção, de preferência àquela outra, fosse verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma diferença prática qualquer, então as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã. Sempre que uma disputa é séria, deve estar em condições de mostrar alguma diferença prática que decorra necessariamente de um lado, ou o outro está correto. (JAMES, 1979, p. 18)

Observamos que para o autor a filosofia deve procurar não ficar em disputas argumentativas, onde pesem somente a capacidade lógica de organizar o pensamento, para uma compreensão da realidade que seja puramente abstrata, uma disputa a nível filosófico deve rastrear as implicações práticas do que se está discutindo, se não houver nenhuma, então essa discussão deve ser abandonada, pois não levará a lugar nenhum, não levará a nenhum conhecimento que tenha uma utilidade prática, que tenha sentido no cotidiano das pessoas. Assim podemos perceber que para essa forma de se fazer filosofia, a verdade tem um caráter funcional, a verdade ou o verdadeiro deve ter uma utilidade, ou seja, uma consequência prática, implicando em relacionar a filosofia a situações vivas, do cotidiano.
            Segundo o método pragmático, não podemos nos limitar a nenhum fato, ou verdade como definitivos, temos é que extrair o seu valor prático, temos que colocar nossas ideias, fatos e experiências para trabalhar em função de nosso cotidiano, de nossos fins práticos. Segundo ele, não há nenhuma diferença em nenhuma parte que não faça diferença em outra,

Nenhuma diferença em matéria de verdade abstrata que não se expresse em uma diferença em fatos concretos e em conduta consequente derivada desse fato e imposta sobre alguém, alguma coisa, em alguma parte e em algum tempo. Toda função da filosofia deve ser a de achar que diferença definitiva fará para mim e você, em instantes definidos de nossa vida, se esta formula do mundo ou aquela outra for a verdadeira. (JAMES, 1979, p. 19)

Desta maneira, toda diferença em matéria de verdade deve fazer uma diferença na prática, e isso é o que se torna como verdadeiro para essa doutrina. Percebe-se nesta afirmação que as ideias para serem consideradas verdadeiras devem de alguma forma concordar com a realidade e a realidade são os fatos e estes, por sua vez, devem ser empíricos, a realidade deve corresponder aos fatos e é a partir deles que construímos nossas crenças.
            O pragmatismo tenta trabalhar a filosofia, na busca da verdade como prática, sobre uma ótica da ciência, essa corrente de pensamento busca flexionar as teorias, transformá-las em algo não dogmático, é uma visão de ciência que se aproxima mais do falibilismo.

Em A fixação das crenças (Peirce) admite fundamentalmente que toda tentativa no sentido de descobrir a verdade pode estar laborando em erro e é exatamente à espreita do erro provável que a verdadeira pesquisa científica avança, na medida em que a certeza absoluta, a precisão absoluta, a universalidade absoluta e mesmo o chamado inexplicável são cuidadosamente examinados e afastados como entraves à pesquisa pelo método científico ou experimental. (VOGT, 2005)

            Peirce, o pai do pragmatismo, foi um cientista, por isso buscava aproximar a filosofia da experimentação, da verificabilidade e das consequências práticas que uma opinião ou crença possa nos trazer, quais suas implicações práticas. Segundo Guyw (1972, p.152), Peirce acreditava que “[...] a filosofia deve tornar-se cientificamente objetiva, e manter a integridade do método de laboratório, que trata das ideias como hipóteses a serem provadas e não como crenças que se devem ser aceitas como conclusivas [...]”, e desta maneira a filosofia não deve depender de valores ou fins pré-concebidos.
            Segundo Vogt (2005), Peirce estava preocupado em desenvolver uma relação entre filosofia e ciência, desta maneira desenvolve o método pragmático na tentativa de fornecer um método científico para a filosofia, ou seja, um método que pudesse conferir significado às ideias filosóficas em termos experimentais, de modo que a investigação das opiniões, a fim de estabelecer-lhes a verdade, é o objetivo fundamental do método científico, enquanto o pragmatismo deve responder pela determinação experimental do significado das ideias ou conceitos intelectuais.
            James concorda com essa visão mais voltada para a ciência colocada por Peirce, porém, vai um pouco mais além ao dar-lhe uma aplicação na prática religiosa moral e pessoal, não se limitando somente ao científico, experimental e objetivo. Para ele “o pragmatismo pode ser um harmonizador feliz dos processos empíricos de pensamento, com os reclamos mais religiosos dos seres humanos”(JAMES, 1979,p. 26), se a fé religiosa tiver algum efeito prático na vida da pessoa que acredita, então ela é válida.
O James admite essa possibilidade em virtude da importância que ele dá à psicologia, para ele o pragmatismo poderia sim interferir em questão de valores éticos, religiosos ou vida pessoal, porém, sem esquecer que a crença deve ser entendida em termos de ação. Portanto, o pragmatismo que implica a ação das pessoas pode abrir-se a estas dimensões da vida cotidiana das pessoas. As questões morais e as crenças religiosas são tais que não podem ser solucionadas somente de forma intelectual ou de modo teórico. “O pragmatismo é uma filosofia prática porque dá aos desejos, esperança e crenças do homem algum controle sobre suas ações, [...] olha para o futuro em busca de suas realizações. Não espera passivamente que as coisas aconteçam; antes, acredita em ajudá-las a se tornarem reais” (GUYW,1972, p. 158), pois as realidades existentes podem ser modificadas.
            O pragmatismo se consolida como filosofia prática e mundana, porque busca, como nos diz James:
[...] afastar-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados, com pretensões ao absoluto e as origens. Voltar-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e o poder. "[...] O que significar livre e possibilidade da natureza, em contraposição ao dogma, à artificialidade e a pretensão de finalidade na verdade.”
             
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 CORNU, Augusto. Carlos Marx Federico Engels. Habana: Editorial de Ciências Sociales, 1975.
JAMES, William. O que significa pragmatismo. In. Coleção Os Pensadores. S. Paulo: Abril Cultural, 1979.

MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In. ________ ; ENGELS, Friederich. A Ideologia Alemã. Trad. De Luiz Cláudio de C. e Costa. 2. ed. S. Paulo: Martins Fontes, 1998.

__________ . Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. S. Paulo: Boitempo, 2004.

PEIRCE, Charles Sanders. Escritos escolhidos. In. Coleção Os Pensadores. Trad. De Armando Mora de Oliveira. 3. ed. S. Paulo: Abril Cultural, 1983.

STROH, Guyw. A filosofia americana: uma introdução (de Edward a Dewey). Trad. De Jamir Martins. S. Paulo: Cultrix, 1972.

VOGT, Carlos. Finalmente Peirce, ainda Peirce. In. http://www.comciencia.br. Acesso em 10/11/2007 às 15:20 h.






[1].“Feuerbach, não satisfeito com o pensamento abstrato, quer a intuição; mas não apreende a sensibilidade como atividade prática, humano-sensível.”

FILOSOFIA: ESPAÇO E TEMPO COMO DETERMINAÇÃO DA COISA NA FILOSOFIA HEIDEGGERIANA



Introdução: O que é uma coisa?



Partindo da análise heideggeriana da determinação da coisa baseado em “O que é uma coisa?” um texto publicado em 1962 e que tem por base o Curso do Semestre de Inverno de 1935/1936 dado pelo autor na Universidade de Freiburg, utilizarei aqui a parte preparatória onde Heidegger analisa os diferentes modos de questionar acerca da coisa, focando na questão espaço e tempo como determinação da coisa na filosofia heideggeriana.

        A questão acerca da coisa é muito antiga, mas ao questioná-la faz-se brotar sempre algo novo, pois a coisa sempre está posta. Precisamente, como diz Heidegger o cito na época das concepções de mundo: Heidegger quer assegurar o que foi posto, assegurar tem que ser um calcular, pois somente calculabilidade garante a certeza de antemão e do modo constante a respeito daquilo a ser representado. Verdade vem a ser a validade dessa representação. Logo, faz-se necessário  perguntarmos  acerca da “coisa”, isso  nos  remete a uma dúvida terrível, e percebemos que não podemos começar do nada ou do acaso, comitantemente também não podemos ficar somente olhando para o céu, a procura de “estrelas escondidas”, sendo que a coisa está abaixo do nosso nariz (HEIDEGGER, 1987, p.14).
A questão que nos traz Heidegger, não se pode começar com questionamentos acerca do espaço e do tempo, mas apenas da indagação “o que é a coisa?”. O primeiro a falar da palavra ou termo acerca da coisa foi Protágoras com sua máxima que nos foi legada: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto existem, e das coisas que não são, enquanto não existem”. Neste contexto, Protágoras não estava querendo colocar como centro  a coisa, mas sim, o homem como padrão de julgamento e critério fundamental que determina  a coisa.
Desta maneira, postulamos primordialmente que a concepção da coisa tem múltiplos significados, nela tendemos a uma coisa, podendo ser uma caneta, uma pedra ou um pedaço  de madeira, como qualquer objeto que ocupe lugar no espaço. Porém, já não temos certeza quando falamos em um número, visto que não temos como experimentar pelos sentidos e determina-lo como uma coisa, assim como um local incerto, escolhas, etc. (HEIDEGGER, 1987, p.16).
Heidegger faz uma analogia da coisa com a antiga palavra alemã (Thing) como “discussão de um processo, discussão em geral, assunto; tal como quando tomamos as coisas claras, ou quando o ditado diz: uma coisa boa tem o seu tempo próprio” (HEIDEGGER, 1987, p.16). Esse processo leva Heidegger a conceber dois sentidos para a coisa, o sentido restrito e o sentido lato. O sentido restrito é o disponível, o visível, o evidente. No sentido lato é qualquer coisa que aconteça de um modo ou de outro, as coisas que se passam no mundo, acontecimentos, eventos (HEIDEGGER, 1987, p.17).
Heidegger cita Kant, pois na Crítica da Razão Pura ele trata da coisa, mas da coisa em si, que esta vinculada as coisas além da sensibilidade humana, ou seja, não é mais a pedra, não é mais o cavalo, nem uma planta, mas sim uma coisa absoluta que o homem não tem acesso pela experiência. Percebemos então, que coisa em Heidegger tem a ver com algo que existe mesmo e que seja determinado, simultaneamente a coisa é totalmente o contrário do nada, que não é ente e nem objeto.
Logo, não podemos experimentar o conceito de Deus e muito menos o próprio Deus, cabe aqui entender Deus como uma coisa, assim como um X ou um Y, comitantemente que um número, a fé, honra, lealdade, fidelidade que é qualquer coisa. Deste modo, recorremos a perguntar o que é a coisa? Mas, perguntando também que coisa? Devido a isso, percebemos que essa formulação é mal empregada, pois quando questionamos pela caneta, onde está a caneta? A caneta minha ou a sua, ou de outra pessoa em outro local, desta maneira continua indeterminado a questão da coisa.
Para tal intento, Heidegger afirma que nesta questão chegamos tarde em saber o que é a pedra, a flor ou o cavalo, porque já temos áreas nas ciências que estudam sobre essas coisas, mas Heidegger quer saber o que é a pedra enquanto coisa. De sorte que, avançamos apenas para saber o que é a coisa, esses objetos são meios necessários para chegarmos a coisalidade da coisa, logo nunca saberemos a coisalidade da coisa sentado em casa no sofá assistindo televisão, mas sim em locais de trabalho de investigação ou em oficinas. Através das coisas que chegaremos num condicionado, num fundamento sólido, pois quando vemos a coisa, queremos saber o que esta por de trás daquela coisa, ou seja, a coisalidade da coisa, um fundamento sólido, um solo (HEIDEGGER, 1987, p.20).

Metafísica como além daquilo que conseguimos apreender



O botânico, o geólogo, o mineralogista, o zoólogo, todos eles se especializam  e quando vão estudar determinada coisa buscam primordialmente o progresso da ciência ou buscam novas descobertas, mas a coisa que eles querem difere no que a ontologia heideggeriana busca, aqui queremos apenas saber um pouquinho mais acerca da coisa, sendo que nosso saber não é nem menor nem maior que o saber da ciência, só compreendemos um pouco diferente do que a ciência compreende e diferente do que domina as concepções de mundo.
Então, nesta perspectiva Heidegger quer chegar, na verdade, no que determina a coisa ser coisa, questionando, experimentando e determinando uma possível possibilidade de estabelecer algumas considerações previas de como se pensa esta noção. A coisa é um questionamento que surge no âmbito radical acerca dos surgimentos de projetos de mundo em geral. Ela aponta para certos acontecimentos históricos que não transformam somente dimensões da vida, de indivíduos ou grupos singulares, mas instauram modos de relação entre o ser e o homem e o ente na totalidade. A percepção deste acontecimento heideggeriano,  não nos leva muito longe, porque estamos cheios de questionamentos metafísicos da coisa, uma vez que rapidamente nos vemos confrontados com uma proliferação de conceitos que não possuem nenhuma clareza imediata. Quando ficamos dispersos com informações incessantes sobre certas dimensões particulares do todo, mas se pensarmos historicamente, isso significará para nós pensar o acontecimento mesmo dessa unidade vinculadora desses acontecimentos de uma época. Todos os renascimentos historiológicos não passam de fachada para equívocos históricos. Heidegger quer que nos movimente pelo viés histórico, ou seja, com aquilo que acontece naquela época.
Mundo significa ente na totalidade, e como tal o ser aí se coloca e o põe como ente. Concepções de mundo quando Heidegger comenta, significa que o mundo vem a ser o repertório de significado e sentidos para designar o surgimento dessa medida vinculadora simples que instaura uma época.
Antes de prosseguimos vamos abrir um parêntese no nosso diálogo e vamos falar da nossa experiência cotidiana, de uma coisa já sabemos nós como sujeitos, e eus individuais, somos influenciados pela sensibilidade e trazemos em nós apenas imagens subjetivas, as coisas próprias da coisa, não alcançamos. Heidegger vai dizer que mesmo quando a experiência cotidiana tem em si uma verdade, ela deve ser apresentada e fundamentada para ser assumida enquanto tal (HEIDEGGER, 1987, p.27).
É por isso, que para todas as coisas há um duplo, Heidegger (1987, p. 24) cita o exemplo do pastor de ovelhas:
O pastor de ovelhas vê o sol se pôr todos os dias e acha que o sol que girou em torno da terra, percebe-se o problema do que é uma aparência, pois o sol não se põe, mas naquele momento que ele desce aparentemente, ele está em outro espaço como por exemplo o sol de meio-dia em um determinado lugar. Logo, o sol do pastor difere do sol do astrofísico, pois o sol pertence a um sistema que denominada de Via Láctea e que é de uma dimensão muito maior. Desta maneira, que sol que é verdadeiro, é o sol do pastor de ovelhas ou do astrofísico? Para isso, é necessário dividir o que é uma coisa e o que significa ser coisa e como se determina uma verdade de uma coisa.

Para isso diz Heidegger, temos que tomar uma posição frente a nossa experiência cotidiana para que haja uma verdade fundamentada. Na experiência cotidiana sempre estamos nos deparando com “coisas singulares”, ou seja, pedra, cadeira, mesa, entre outros diversos objetos, além disso, precisamos dizer que a pedra é, a cadeira é, a mesa é, sempre objetos já determinado, concluímos provisoriamente que não há nada em geral, mas sim coisas ou entes singulares e essa singularidade é que faz cada coisa ser ela mesma e não outra coisa.

O que é espaço e tempo?



Essa interrogação acerca da determinação da coisa nos leva a fazer outras questões: O que é o tempo? E o que é o espaço? Percebemos que isso na filosofia heideggeriana é  familiar, mas o autor questiona ainda por que o espaço e o tempo estão unidos um ao outro através de apenas um “e”, Heidegger entende que quando colocamos esse “e”, parece que estamos colocando o espaço e tempo como cão e gato. Assim, para estabilizar essa questão Heidegger prefere chamar a questão de espaço de tempo, e o determina como uma porção de tempo, por exemplo, o espaço de tempo de 100 anos, delimitando o tempo e espaço para compreender a temporalidade.
Logo, nesta questão o que é a coisa? Inclui a questão do espaço de tempo, na qual como se determina, segundo parece, que consiste ser esta coisa. Com isso, uma coisa é essa coisa e não pode ser outra, por mais que sejam idênticas, ser esta coisa é está em conexão no espaço e no tempo. Isso nos indica que o lugar e o momento de tempo mostram precisamente que as coisas se encontram aqui ou ali.
Percebemos até aqui, que espaço e tempo são exteriores a coisa. Heidegger  exemplifica essa situação com um pedaço de giz, um pedaço de giz ocupa um espaço, o pedaço de giz é extenso, este espaço está simplesmente ocupado, preenchido. O interior do giz consiste em espaço, dizemos que ele ocupa e encerra em si mesmo através da superfície,  como se ele fosse um mero interior. Quebramos o giz em dois pedaços, encontramos agora com seu interior? Tal como antes estamos no exterior nada se modificou. No momento que quebramos o pedaço de giz, através de um corte queremos agarrar seu interior, até que o giz tenha se transformado em pó totalmente. Através de um microscópio podemos ver minúsculos grãos, mas não encontramos nada no que respeita ao “quê” (essência). Continuamos o desmembramento podemos chegar até a estrutura atômica das moléculas, mas tomando o caminho da química e física, ele nos conduz apenas no domínio “mecânico”, além de uma porção de espaço em que qualquer coisa material repousa num lugar. A física atômica de Niels Bohr em 1913 estabeleceu seu modelo atômico e as relações de matéria e espaço, verificando que não são nada simples, para Bohr o que situa num lugar e ocupa espaço deve ser, ele próprio, extenso. A questão que Heidegger propõe era saber como se observava o interior dos corpos extensos e o resultado que ele tirou disso foi que o interior, diz ele continua a ser um exterior para os corpos, por menores que se tornem como nosso giz, resultou em um monte de poeira (HEIDEGGER, 1987, p. 29).
O giz ocupa apenas um espaço, nada mais além que isso, e espaço é o limite que  separa o interior do exterior, o interior é o exterior recuado, somente o tempo é exterior as coisas, o giz também tem seus tempos, momentos de tempos, ora está aqui e ora está ali, agora é grande, no futuro é pequeno ou transformado é um monte de poeira, para Heidegger o  tempo é uma questão de significância, de forma que sabemos que com o passar do tempo as coisas se alteram, consideramos a contagem do tempo no relógio, mas onde está o tempo? Olhamos e vemos ponteiros se movimentando, mas onde está o tempo? Abrimos o relógio e buscamos pelo tempo e não encontramos o tempo. Se cada coisa é esta coisa no espaço e no tempo, então introduzem enquanto argumento que o tempo é uma sequência de “ágoras”, que atualiza a cada momento o agora a coisa.

Considerações finais



Resultado, uma coisa para Heidegger é um suporte subsistente de diversas propriedades, que nela subsistem e se modificam. Percebemos que essa resposta resulta perfeitamente da experiência cotidiana, onde há um sujeito e um objeto, isso é natural, e é nesse natural que Heidegger caminha para a designação da coisa, é por si mesmo e compreensível no cotidiano. Essa naturalidade da coisa tem sinal histórico, pois sempre que compreendemos preliminarmente a coisa, alguém compreendeu anteriormente a  coisalidade da coisa com uma tradição histórica. Esses acontecimentos históricos que não transformam apenas dimensões da vida, de indivíduos, ou grupos singulares, mas que instauraram novos modos de relação entre o ser humano e o ente na totalidade. A percepção deste horizonte do conhecimento acerca da coisalidade da coisa nos coloca confrontados com a proliferação que não possui nenhuma clareza. Dizer que há uma ligação essencial entre a coisa e os surgimentos históricos de projetos de mundo permanecem uma informação a ser investigada, enquanto não sabemos o que significa um projeto de mundo e o que o distingue de um acontecimento histórico.
Entendo história no aspecto da questão, como o correlato do processo de sedimentação das visões de mundo, ou seja, ela está muito próxima da visão de mundo em Dilthey. História é o processo paulatino de constituição de significação e sentidos, a partir dos quais o ser ai se orienta nas suas realizações, em um determinado momento vai ser um termo para designar o surgimento de uma medida ontológica que vincula todos os acontecimentos de uma época.
Acontecimento apropriativo é o ponto que perscruta a si mesmo e aponta para o interior desse meio que o pensamento precisa se conduzir para toda essenciação da verdade do ser. Em primeiro lugar não conseguiremos perceber como Heidegger pensa essa noção. Acontecimento apropriativo é algo que surge no âmbito radical acerca do surgimento de projetos de mundo em geral.
Heidegger aponta para o modo que procura caracterizar acontecimentos históricos que não transforma apenas dimensões da vida, de indivíduos, ou grupos singulares, mas que instauraram novos modos de relação entre o ser humano e o ente na totalidade. A percepção deste horizonte do conhecimento apropriativo, quando nos vemos confrontado com proliferação que não possui nenhuma clareza. Dizer que há uma ligação essencial entre acontecimento apropriativo e os surgimentos históricos de projetos de mundo permanecem uma informação vazia, enquanto não sabemos que significa um projeto de mundo e o que distingue um acontecimento histórico.
Creio que esse problema seja superado com a hermenêutica e a fenomenologia, utilizando como método de interpretação das concepções de mundo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



HAAR, Michael. Heidegger e a essência do homem. Tradução de Ana Cristina Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa? Lisboa: Edições 70, trad. Carlos Morujão, 1987. INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.


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